O Drama do Gênero Humano


O fragmento de 1790 traz um diálogo entre Fausto e Mefistófeles que começa com as seguintes palavras programáticas de Fausto para a versão nova de toda a obra:

“E o que está repartido para toda humanidade,
Eu quero saborear no meu eu interior,
Com meu espírito alcançar o mais alto e mais profundo,
O seu bem e sua dor acumular em meu coração,
E assim estender o meu próprio eu ao seu eu,
E, como ela própria, no fim também me decompor”.

Aqui está claramente manifesta a colocação específica do problema, através da qual o “Fausto” se tornou um poema universal singular: no centro está um indivíduo, cujas experiências, cujo destino e desenvolvimento ao mesmo tempo devem representar a sorte de toda a da espécie.

Isso necessita ainda de uma concretização definida. Pois cada figura autêntica e profunda, tipicamente criada na poesia alcança até os problemas de toda humanidade. Mas ela o faz de certo modo só com um lado de sua essência, só como expressão do seu mais alto desdobramento poético, só como generalização do tipo horizontal de toda obra. Para ser um ser humano realmente criado, cada figura da literatura deve ser precisamente específica, especial, só pode deixar a universalidade transparecer. Por outro lado: cada pedante esforço enciclopédico pela ilustração de todo o mundo, todo o processo mundial destrói a vivacidade poética dos personagens e situações. Isto acontece até mesmo em um grande poeta como Milton, e com maior razão em Klopstock. Dante, no entanto, cria a unidade do processo, a hierarquia da realidade objetiva somente nos ambientes subjetivos e reflexões da figura-eu e seus condutores, der Virgílio e de Beatriz: a riqueza viva, a agitação humana, a dramaticidade interna do mundo representado manifesta-se nas várias centenas de isoladas personagens passageiras em Dante.

Perante a censura de uma tragédia de Fausto - em todos os opostos secularmente condicionados – chega-se uma comédia “divina” e “humana”.

A odisseia de Fausto da fatalidade à redenção é que deve ser, assim como ela é, uma abreviatura do próprio desenvolvimento da humanidade, sem nisso suprimir a individualidade, a concretização histórica e humana do herói, sem que desapareçam as etapas individuais do seu caminho a uma universalidade idealmente abstrata.

Esta concepção salienta o “Fausto” da fila de outras obras primas épicas e dramáticas e faz dele uma “produção incomensurável”. Mas – de modo aparentemente paradoxal, realmente muito natural – nós chegamos pela primeira vez daqui ao entendimento das ligações ocultas da sua composição, nós podemos só a partir aqui descobrir as raízes históricas da poesia.

O “Fausto” de Goethe e a “Fenomenologia do Espírito” de Hegel estão relacionados como as maiores produções artísticas e intelectuais do período clássico da Alemanha. (É interessante observar que a “Fenomenologia” foi concluída quase ao mesmo tempo, em 1807, com a primeira parte do “Fausto”). Engels caracteriza o lado metodológico da obra de Hegel par nós aqui essencial como “um paralelo da embriologia e paleontologia do espírito”, como um “desenvolvimento da consciência individual através de suas diferentes fases, concebido como uma reprodução resumida das fases, pelas quais a consciência dos seres humanos passou historicamente”.

Mas a “Fenomenologia” de Hegel é somente o mais expressivo produto, que resume todas as tendências da época, elevado ao mais alto nível alcançado naquele tempo. As tendências que conduzem para cá são já visíveis muito antes. As “ideias” de Herder eram já a primeira tentativa para isso, apenas Herder devia fracassar n sua a incompreensão dos problemas dialéticos. Na dialética idealista o pensamento da história que aparece resumida no indivíduo apresenta-se embrionariamente já em Kant e Fichte, a cultivada por Kant e Fichte, Schelling concebe já o processo histórico na natureza e na sociedade como uma “odisseia do espírito”, como sua volta para si próprio, e ele considera os estágios isolados, que o pensamento filosófico percorre da percepção até o conhecimento adequado do mundo como épocas.

Mas todas essas tendências são somente embrionárias, e sua verdadeira conclusão, sua consequente execução metodológica elas só obtêm na “Fenomenologia” de Hegel. Aqui se

cruzam e se interpenetram três concepções coerentes da história: primeiramente o engrandecimento histórico do homem isolado da simples percepção do mundo até o seu completo conhecimento filosófico; em segundo lugar a elevação histórica da humanidade dos seus mais primitivos até a elevação cultural da época atual hegeliana: para a grande Revolução Francesa, sua subjugação através de Napoleão e aquela moderna sociedade burguesa, que se ergue deste sismo. E finalmente, a terceira, todo o desenvolvimento histórico é concebido como obra do próprio ser humano: o homem cria a si próprio através do seu trabalho. Marx salienta especialmente como característica da grandeza desta obra que Hegel concebe “a essência do trabalho e compreende o homem concreto, verdadeiro, como homem real, como resultado de seu próprio trabalho.

Este processo, segundo Marx, só é assim possível, porque o ser humano extrai “realmente todas as suas forças genéticas”... Com isso também o problema de “Fausto” é formulado filosoficamente de modo geral. Como essas forças genéricas originam-se, desenvolvem-se, que obstáculos elas vencem, que destinos elas sofrem, como o mundo natural e histórico-sociamente dado influi como dele sobre ele a realidade independente e como ela é ao mesmo tempo o produto ou (no caso da natureza) o objeto da sua atividade surgindo de si própria, de onde esse caminho toma seu ponto de partida para onde ele conduz: - este é o tema do “Fausto”.

Evidentemente o indivíduo em Goethe é ainda mais que em Hegel o portador imediatamente visível do processo apresentado. Para Hegel a consciência individual é um quadro reduzido do desenvolvimento do gênero; por isso incorporam-se nele as etapas isoladas do caminho do desenvolvimento em “configurações da consciência” idealmente expressivas, individualmente caracterizadas. Mas o destino do gênero humano deve aparecer como uma abreviatura no individual, então a série mental das categorias e etapas consecutivas do desenvolvimento da espécie resumidamente representada pode não ter os objetivamente lógicos sucessivo e afastado da filosofia absoluta. Esta sua série deve ser rompida e substituída por outra, nova, condicionada pelo desenvolvimento da consciência individual. Embora desse modo pareça resultar uma arbitrariedade para o pensamento lógico normal, deve ser reconhecida a nova ordem, a reflexo abreviado do todo (do gênero) nos seus pormenores, a necessidade deste reflexo distorcidamente aparente na redução, da própria lógica deste desenvolvimento.

O desconcertante na roda das “conformações da consciência” na “Fenomenologia do Espírito”, onde segue ao Rameau de Diderot o terror dos parisienses, para ser separado de Antígona, esclarece-se, quando nós o observamos deste ponto de vista, a partir da lógica desta abreviatura, e reconhecemos nas etapas concretas isoladas o princípio que ordena rigorosamente.

Assim também a está construída composição do “Fausto”. Goethe sempre se defendeu contra o fato de que no “Fausto” ele tivesse tentado incorporar qualquer “ideia”. Tais ditos de Goethe contradizem apenas aparentemente a sua defesa contra os puros empíricos. Quando por exemplo o historiador Luden recusou cada explicação filosófica do fragmento de 1790 e quis que se mantivesse somente no individual, Goethe remeteu contra isso aos esforços dos filósofos, de descobrir o abstrato ponto central de sua obra. “Mas o que produziu esta necessidade? Sem dúvida então o próprio fragmento. O individual que lhes parece bastar, não satisfez outros, e, contudo, eles não jogaram fora o livrinho, mas eles o seguraram, ou de novo e outra vez novamente o tomaram nas mãos. Portanto deve haver algo no livrete e passar pelo livrete, o que indica o ponto central, a ideia que em todas e em cada uma evidencia. Goethe dá aqui uma clara descrição daquilo que reconhece como ideia poética: um ponto central invisível, no qual se concentra o problema central de sua concepção do mundo, de onde, sem que o ponto central fosse expressamente criado ou mesmo abstratamente manifesto, a relação de todas as partes torna-se nítida e compreensível, a universalidade moderada do gênero obtida, sem perder a sensualidade imediata da individualização.

Esta composição de Goethe ganha a sua verdade interior do coincidir - não mecânico, não esquemático – dos problemas do desenvolvimento do indivíduo e da espécie. O poeta Goethe sai do indivíduo Fausto, e cada passo que a obra dá, deve confirmar-se a partir daqui, senão a unidade da pessoa como indivíduo é rompida. Mas o caminho dialético dentro das fases isoladas de desenvolvimento, suas sequência, as etapas intermediárias omitidas como supérfluas ou evidentes, este caminho dialético já ultrapassa o indivíduo e traz sua verdade no desenvolvimento histórico-social, antropológico da própria espécie.

Desta dialética unidade dupla do indivíduo e da espécie trazida para a unidade artístico orgânica surge o fantástico da composição da ação. A ação completa permanece às vezes persistente, onde o indivíduo impacientemente nas barras da prisão da má época; ela assalta com botas de sete léguas, quando o desenvolvimento da espécie dá um salto. Assim nós vivenciamos também no “Fausto” uma época do mesmo modo fantasticamente irregular, subjetivamente objetiva e uma sequência temporal como na “Fenomenologia”. Goethe tem a consciência disso. Na publicação do fragmento da Helena (em 1826) ele escreve a Wilhelm Von Humboldt: “Eu continuei a trabalha de vez em quando nisso, mas esta peça não pode ser concluída na qualidade da duração dos tempos, pois que ela agora representa os seus 3000 anos completos, da queda de Tróia até a conquista de Missolunghi. Isto se pode, portanto, também contar para uma unidade de tempo, num sentido mais alto; mas a unidade do lugar e da ação também observada o mais meticulosamente num sentido normal”.

Este fantástico tem as suas raízes exatamente no realismo de Goethe. Goethe nunca excede a moderação da espécie, ele jamais a deixa congelar em um ser independente diante do indivíduo, ainda cobrir a singularidade das figuras isoladas. A realidade da espécie humana Goethe considera sóbria e realisticamente. Ele diz: “O mundo racional deve ser observado como um grande indivíduo imortal que realiza irresistivelmente o necessário e através disso se senhor até mesmo sobre o acidental”. E justamente na época do trabalho em “Fausto”, ele escreve a Schiller que a natureza “por causa disso é impenetrável, porque nenhum ser humano a pode compreender, embora toda a humanidade talvez a pudesse entender”. O fantástico do moderado genérico, que surge neste fundamento de visão do mundo, serve para o fato de criar um ambiente real, mas livre de toda mesquinhez naturalista, enquanto da situação fantástica e das categorias individuais elevadas através dela resulta sem cerimônia a elevação dos problemas à altura e à tipicidade da moderação da espécie.

Assim o caminho da “Fenomenologia” poética da espécie humana na consciência individual e no destino do Fausto está livre, agitado, distante da lógica pedante, da “completude” pedante, dissoluto e romanticamente pendente, saltando com numa balada os degraus intermediários, mas ao mesmo tempo de profunda necessidade histórica e social e justamente por isso verdadeiramente humana: individualidade e espécie igualmente abrangentes.

Goethe chama “Fausto” de tragédia. Ele é na realidade mais que isso: ele é a simultânea imposição e supressão do trágico. O destino individual de Fausto abrange mais que uma tragédia (o gênio da terra, Gretchen, Helena, a conclusão), mas para o caminho do desenvolvimento da espécie cada um deles é somente uma fase de transição. Essa posição do Goethe idoso passa com o trágico – às vezes até mesmo por ele próprio - foi frequentemente mal compreendida. Ele escreve esporadicamente a Schiller que a tragédia pressuporia um “interesse patológico, e ele estaria convencido de que “uma mera tentativa” de criar uma tragédia “poderia destruí-lo”. Schiller reconhece neste caso a natureza de Goethe melhor que ele mesmo. ”Em todas as suas poesias”, escreve ele, “eu encontro todo o poder trágico e a profundidade, conforme ela chegasse a uma completa tragédia; em Wilhelm Meister, no que se refere ao sentimento, há mais que uma tragédia”. E ele diz resumindo, se Goethe não poderia escrever uma tragédia, “então o motivo não deveria estar nas exigências poéticas”. Décadas mais tarde, na conclusão da segunda parte, Goethe já está muito mais esclarecido sobre a sua posição para o trágico. Ele escreve a Zelter que para ele “o irreconciliável aconteceria bem absurdamente” e que por isso “o caso meramente trágico não o interessaria”.

Aqui a posição filosófica da poesia universal já está conscientemente assentada. Goethe está igualmente muito distante da falsa profundidade, do pessimismo unilateral do século XIX (que às vezes leva-o ao rótulo de Pantragismo) como do otimismo superficial da literatura liberal e da filosofia da mesma época que queria em geral negar a necessidade do trágico ou na melhor das hipóteses subjetivá-la. Goethe e Hegel veem aqui justamente o problema da espécie e do indivíduo. O caminho da espécie não é trágico, mas ele conduz através de tragédias individuais incontáveis, objetivamente necessárias.

Goethe como Hegel possui a convicção do Iluminismo, que o gênero humano é ilimitadamente capaz da perfeição, se ele uma vez se libertou dos grilhões da Idade Média. Esta convicção ambos manifestaram inúmeras vezes. Nós lembramos mais uma vez o dito de Goethe em Valmy e a passagem que na filosofia de Hegel ocupa a “magnífica aurora” da Revolução Francesa. Mas esta crença do Iluminismo no progresso da humanidade recebe neles uma variação e peculiaridade essenciais através dos acontecimentos históricos que eles atravessaram. As contradições concretas da sociedade capitalista resultante da Revolução Francesa mudam para o ponto central da sua percepção e do seu pensamento do mundo. Estas contradições eles nem querem agora borrar ou moderar nem admitir nem reconhecer o seu caráter dissonante como o último princípio da história. Com isso o mais imaginavelmente alto ponto de vista burguês para o progresso da humanidade está ganho, só para os utopistas socialistas, como Fourier, é possível um outro, mais alto ponto de vista para as contradições da época pré-socialista, em especial para aquelas do capitalismo.

Esta concepção requer para Goethe e Hegel a diferença da consideração do destino do indivíduo e o da espécie. Com relação ao primeiro ambos são de uma grandiosa não sentimentalidade . Goethe diz em tempo oportuno a Eckermann (isto é a outra página complementar da carta a Zelter a pouco citada): “O ser humano deve se arruinar novamente! Todo ser humano extraordinário tem uma determinada missão que ele está destinado a realizar. Se ele a realizar, então ele não é mais necessário na Terra nesta feição...” Hegel expressa o mesmo pensamento em sua filosofia da história desta forma; “O especial tem seu próprio interesse na história mundial; é algo finito e como tal deve perecer. É o especial, que se combate um ao outro, e do que uma parte é destruída. Mas na luta, na ruína do especial resulta o universal”. Assim surge para Goethe e para Hegel o irresistível progresso da espécie humana de uma série de tragédias individuais; as tragédias no microcosmo do indivíduo são a revelação do irresistível progresso no macrocosmo da espécie: isto é o momento filosófico comum no “Fausto” e na “Fenomenologia do Espírito”.

Da criação poética de tal ação recíproca entre indivíduo e espécie aparece o fantástico romântico como meio de expressão adequadamente poético desta unidade contraditória. Isto foi quanto ao conteúdo e a forma mal entendido pela a maioria dos comentadores, sobretudo por F. Th. Vischer, que sempre – kantiniano - seguiu o critério da moral puramente individual nas transições e nas etapas do desenvolvimento, que devem sair do ponto de vista da espécie sobre tal nível. Assim ele censura o começo da segunda parte, onde Ariel e os elfos, simbolizando o além da moral da natureza e da evolução natural do desenvolvimento da humanidade ajudam Fausto a superar a tragédia de Gretchen:

“Se (ele) sagrado, se (ele)maligno,
Lamenta- a o infeliz”.

A Vischer falta aqui a configuração do arrependimento em Fausto. Mas Goethe a criou repetidamente com grande intensidade no decorrer da tragédia de Gretchen: na cena “dia sombrio”; na tentativa de Fausto de salvar Gretchen; no fracassar desta tentativa que tem seu auge na exclamação desesperada de Fausto: “Oh, se eu nunca tivesse nascido”! Vischer não dá conta da mesma forma de que a tragédia de Gretchen constitui somente o ápice das contradições trágicas na etapa do “gozo da vida”, do “pequeno mundo”; ele não dá conta de que exatamente uma necessidade do desenvolvimento na moderação da espécie exige o ultrapassar sobre este mundo todo. Este ultrapassar não é somente para Gretchen, como também trágica para o próprio Fausto (sobre o que nós vamos falar mais tarde detalhadamente), para o destino da espécie todavia – despreocupadamente com as tragédias individuais – exatamente um tal continuar é necessário. Justamente nesta necessidade põe-se uma mais profunda tragédia de Fausto como a de um arrependimento mera individualmente moral, como Goethe o tratou em Weislingen, Clavigo, e assim por diante. A objeção de Vischer quer arrastar o Fausto para baixo ao nível de Weislingen.

É, portanto, meramente lógico que a configuração do “grande mundo”, do “prazer da ação e do criação” começa com a fantástica cena de Ariel e dos elfos, na qual este elevar da espécie mais que individual e moral se manifesta sobre o destino individual com grande nitidez poética. (É interessante que nos primeiros esboços de Goethe ainda aparecem problemas individual-morais, mas estes se afastam durante o trabalho).

Mas a fantástica realização do “Fausto é além disso histórica. E na verdade em um sentido muito amplo e livre: é o historismo de uma tradição popular, que própria em suas mais ousadas improbabilidades empíricas nunca abandona o solo real da história, que só engrandece lírica, patética ou satiricamente as suas determinações essenciais, sem com isso alguma vez desfazer-se do autêntico colorido da época. O trabalho poético de Goethe, tanto quanto ele se distancia nos seus pormenores do mito, inverte muitos dos seus moimentos transmitidos para o contrário, continua aqui o trabalho popular em um grande personagem representando seu destino; ele reforça a histórica imaginação popular criadora do mito, salva-a para a poesia e a eterniza . Pois as transformações de Goethe no mito são na maior parte purificações das suas desfigurações ortodoxo- luteranas, das escórias assim nascidas nele. Por isso não somente as pessoas reais do drama, como Wagner, Valentim e assim por diante, são de uma profunda autenticidade histórica, mas também Mefistófeles é um espectro gótico do século XVI:

“Na idade da névoa tornou-se jovem,
Na trapalhada da cavalaria e clericalismo...”

Mas este fantástico histórico tem no “pequeno” e no “grande” mundo diversas funções. Goethe disse claramente a Eckermann sobre esta diferença de estilo entre a primeira e a segunda parte: “A primeira parte é quase de todo subjetiva; tudo resultou de um indivíduo mais tímido e mais apaixonado... Mas na segunda parte quase absolutamente nada é subjetivo; aparece aqui um mundo mais alto, mais amplo, mais claro e mais impassível...”

Na primeira parte – apesar do papel de Mefistófeles – nós temos um mundo da realidade bem fechado, historicamente autêntico diante de nós, dentro do qual, bastante claramente separado, o fantástico representa, em parte em cenas especiais, tencionadas sobre o fantástico (a cozinha das bruxas, a noite das bruxas), em parte devido a um crescimento para além de quadros realistas para o fantástico (o porão de Auerbach). Mas o fundamento forma numa representação realística do século XVI alemão como em “Götz”, só mais aflito, mais dramático, poeticamente mais elevado.

A objetividade de Goethe do ”grande mundo” não suporta mais um realismo assim de boa índole. Realizam-se agora as determinações essenciais, típicas e somente estas. O realismo de Goethe aspira aqui a uma representação, na qual tal ambiente, que é como dado e realmente realizado, pode render uma rivalidade real para as ações do indivíduo Fausto. Por isso – em toda quanto ao conteúdo histórica fidelidade da verdade – tudo está aqui avançado pelo fantástico: não há mais limite entre o real e o fantástico: está uma verdade fantástica diante de nós.

Este modo de configuração está estreitamente ligado com a objetividade, com o predominar do destino da espécie. O historismo ingênuo da primeira parte transforma-se em um historismo refletido, a história imediata em uma filosofia da história vivenciada.

Esta mudança determina então a estrutura, o tom e o estilo. A primeira parte é um drama romântico, muitas vezes no estilo do ”Sturm und Drang” (“Impetuosismo”), mas sempre algo diretamente dramático. Na segunda parte também está refletido o dramático. Isto não significa uma mudança para o épico, pois o feudalismo decadente do século 16 (do período de Götz) aparece diante de nós como um presente dramaticamente movimentado, como um complexo diante de nós dos seres humanos que agem, mas não como um relato de algo passado da parte de um narrador presente. É que o desenvolvimento tardio (o hoje do Goethe) examina o presente poeticamente evocado do século 16 e o faz transparente. Não por exemplo, enquanto as categorias sociais e os sentimentos da época de Goethe fossem levados para ele, mas enquanto este só da posição da história avançada de uma dissolução visível do feudalismo mostra já o caráter franco do seu fantasmagórico: o presente imediatamente criado é, portanto, o do visto histórica corretamente período de Götz. Este agora não é mais visto do ponto de vista dos cavaleiros rebeldes, mas de uma perspectiva histórica ampla, na qual também os heróis favoritos da juventude de Goethe aparecem como aparições de solução, como fantasmas entre fantasmas. O conjunto do presente criado revela assim as determinações, que em si até mesmo existiam já naquele tempo, mas que somente a história posterior tornou para nós visíveis e brilhantes. Por isso o fundamento histórico da segunda parte (atos I e IV) é uma grotesca dança macabra, – como nas velhas danças macabras – em que se apresentam não meros indivíduos, mas tipos sociais, uma dança macabra, na qual os próprios seres humanos aparecem como fantasmas, tanto que Mefistófeles com toda a razão pode dizer:

“Aqui não se precisa, eu imaginaria, de palavras mágicas, Os Espíritos acham por si próprios o caminho do lugar”.

Também a distribuição desse material em dois atos não é por acaso ou só condicionada tecnicamente. Trata-se antes do ritmo histórico-filosófico, do conteúdo social-humano da decadente Idade Média. No primeiro ato rompe-se este mundo fantástico, ao qual Goethe confrontou ideologicamente através do espírito da antiguidade então no III a época autêntica do cavalheirismo, do nascimento da nova poesia, da descoberta do amor individual e a da honra da mulher. No IV ato surge de modo historicamente correto como “intermundium” feudalista privilegiado no seio do feudalismo o verdadeiro coveiro: o capitalismo.

Mas o rompimento ideológico tem igualmente a sua pré-história real econômica e corretamente compreendida por Goethe: a invenção e implantação do papel-moeda através de Mefistófeles. (Por que aqui desta e não, como no desenvolvimento capitalista da produtividade, o próprio Fausto é o iniciador, sobre isso falaremos pormenorizadamente mais tarde). O profundo conhecimento de Goethe mostra-se no fato de que o caos do feudalismo dissolvente através do predomínio do dinheiro – o papel-moeda é aqui afinal só um símbolo visível para o dinheiro – só pode se tornar maior sem a transformação das condições de produção econômicas e sociais; o domínio do dinheiro só acelera a queda do feudalismo. Até mesmo o imperador precisa constatar depois do primeiro êxtase sobre o efeito do papel-moeda:

“Eu o percebo talvez, na prosperidade de todos os tesouros: Como vocês eram, vocês permanecem como de costume”.

E o IV ato mostra outro estágio mais alto da dissolução: da luta de todos contra todos, das guerras civis da Idade Média que está findando, surge aquele estado de entorpecimento, o qual a Alemanha teve de atravessar depois da derrota da guerra dos camponeses, depois da Guerra dos 30 anos – o poder dos antigos vassalos tornados pequenos príncipes em um agrupamento puramente decorativo de uma nação partida impotente no império.

Em meio desta dissolução resplandece a antiga beleza. E em verdade de novo duas vezes: uma vez fantástica, a segunda vez como realidade. O citar da Helena Goethe incorporou do mito, todavia ele pretendeu aqui a espiritualmente mais ampla transformação. No mito de Helena é citada por Mefistófeles como espectro diabólico; seu aparecimento e seu convívio com Fausto significam para este o auge dos seus excessos epicuristas. O episódio de Helena do mito é assim, nas versões transmitidas a nós, um momento importante da luta da Reforma luterana contra o espírito da Renascença.

Goethe muda agora completamente esta relação. Os pensamentos da própria Reforma, os esforços da semimística filosofia da natureza nascente na Alemanha de então estão há muito superados na fase da segunda parte. Helena significa para Goethe realmente o renascimento da antiguidade, através da qual o mundo dos fantasmas medieval como isto, que ele é, é desmascarado, aquele renascimento cuja luz gradualmente crescente e que se fortalece finalmente dissipa o reino da escuridão.

Por isso é muito importante – em rude contraste com o mito – que Helena seja chamada por Fausto ambas as vezes à vida. Já na primeira vez, quando somente a sua sombra deve ser evocada, Mefistófeles pode somente dar conselhos e chamar a atenção de Fausto para a dificuldade da missão:

“Pensa tão facilmente provocar Helenas
Como o espectro de papel dos florins?”

No verdadeiro redespertar de Helena, Mefistófeles é um espectador impotente e desinteressado, e é repetidas vezes ironicamente enfatizado que ele como fantasma medieval não tem nada a ver com a antiguidade e também não pode ter nada.

Primeiramente, portanto, é provocada a sombra de Helena e na verdade para um divertimento da sociedade palaciano feudal, que quer ver Páris e Helena . Goethe salienta com a grande nitidez a oposição entre Fausto e toda a sua intimidade medieval, Mefistófeles inclusive, em relação à Helena, cujo aparecimento para eles todos é uma distração desinteressadamente admitida entre os muitos outros divertimentos palacianos; Páris e Helena são criticados do ponto de vista dos conceitos de beleza palaciana; os espectadores os acham “lindos ainda que não precisamente refinados”. O reprovocar da antiguidade não pode significar justamente para o decadente absolutismo feudal nada de realmente fecundo, nenhum novo elemento da realidade. Fausto por outro lado vê já na sombra da Helena a nova realidade emergente e longamente almejada:

“Aqui tomo pé! Aqui estão as realidades!
Daqui em diante o espírito pode brigar com fantasmas,
O reino duplo, o grande, preparar-se!
Tão longe ela estava, como ela pode estar mais perto!
Eu a salvo, e ela é duplamente minha...
Quem a reconhece, este não pode carecer dela”.

A tentativa de Fausto de dominar a sombra de Helena acaba com uma catástrofe. No inconsciente Fausto vive somente a única ansiedade: chegar à verdadeira Helena, à beleza antiga tornada vida. A segunda aparição de Helena deve formar justamente essa realidade em contraposição à indistinção da primeira.

Goethe trabalhou nestas transições por muito tempo com esboços muitas vezes alternados, como ele escreve a Zelter, para que Helena como III ato se associasse bem naturalmente e, moderadamente preparada, não mais fantasmagoricamente e intercalada, mas se pudesse mostrar em sequência esteticamente lógica. O que é então este esteticamente lógico? Goethe se propõe o dever de mostrar: primeiramente que Helena, a beleza da antiguidade, não se simula como magia, como ilusão, mas surgiu de fato naturalmente, em segundo lugar que ela forma o fundamento espiritual-humano para a vida do presente, o ponto de partida para o novo verdadeiramente fértil, e finalmente em terceiro que ela – por razões exatamente iguais – é ao mesmo passado e presente. A clássica noite das bruxas que devolve estas determinações não é por isso um episódio simbólico-fantástico, como foi o medieval na primeira parte, no qual Mefistófeles alcança o sucesso temporário, de desviar Fausto da tragédia de Gretchen através de digressões do pensamento desordenadas, mas ela é a preparação orgânica, idealmente estética do aparecimento real de Helena. (Isto entendido com as limitações acima apontadas).

A clássica noite das bruxas exprime em conformidade com isso o mais claramente a história do desenvolvimento fenomenológico da espécie. Ela é subjetivamente o caminho de Fausto para Helena, mas ao mesmo tempo objetivamente o desenvolvimento da beleza grega das suas origens primitivas, ainda puramente naturais, em parte orientais. Para demonstrar isso nos seus pormenores, seria o trabalho de um comentário minucioso. O plano original de Goethe era que Fausto descesse ao antigo inferno e obtivesse como graça de Proserpina o reprovocar de Helena para a vida. Mais tarde ele mudou este plano. Fausto desce na verdade através da noite das bruxas a Proserpina, mas a cena entre ambos não nos é apresentada. Em compensação aparece no final, nascido do jogo orgânico das forças naturais, a beleza triunfal de Galatea. O caminho dos condores, das esfinges e dos anões do começo até o cortejo triunfal da beleza nascida no mar: isto é a realização do programa goetheano na supracitada carta a Zelter. Se agora Helena aparece viva no III ato, a sua presença não é mais o resultado de uma magia, mas o resultado daquele processo natural, que nós vivenciamos na clássica noite das bruxas. Se uma vez a beleza nasceu naturalmente, assim a aparição de Helena não é nenhum milagre maior que o nascimento de Galatea.

O conteúdo das cenas de Helena é o nascimento do novo, do especificamente moderno da apropriação da antiguidade através da humanidade que se liberta da Idade Média. Helena é agora real, não mais um fantasma – mas que tipo de realidade ela tem? Já a clássica noite das bruxas oscila entre sonho e realidade e tem uma sequência temporal fenomenologicamente fantástica. Ela já começa com o fim da antiga liberdade: da base da harmonia grega e da perfeição da forma – segundo Winckelmann e também Goethe -. Quando assim depois da queda da verdadeira antiguidade, bem depois da batalha em Pharsalos, no campo de batalha, onde o antigo republicanismo definitivamente pereceu, o processo da origem da beleza antiga recapitula-se dramaticamente diante dos nossos olhos, assim este processo oscila necessariamente entre sonho e realidade e seus atores entre personagens reais e fantasmas da memória.

A realidade das cenas da Helena é assim apenas uma fina superfície da beleza que se apresenta, da antiga transformada em personagem, um véu, atrás do qual lutam forças passadas e as ainda não nascidas pelo futuro da humanidade. Helena apresenta-se na verdade com a dignidade e majestade de uma verdadeira rainha, realizada na atualidade, certa do poder irresistível de sua beleza; mas quando Mefístoles-Phorkyas a lembra do próprio passado
em um duelo verbal, dos diferentes mitos, que parcialmente contradizem um ao outro, dos quais ela foi juntada para esta incomparável personagem simbólica,para ela a própria existência se torna sinistra, fantástica, irreal:

“Eu como ídolo me ligo a ele, ao ídolo.
Foi um sonho, assim diziam até as próprias palavras.
Eu me desvaneço e me torno para mim mesma um ídolo”.

Ainda mais distintamente é expressa esta atmosfera da irrealidade no início da cena de Euphorion. O trágico das tendências de Euphorion ainda não se aflorou, tudo parece ainda belo e esperançoso, quando Fausto já tem a nítida sensação de um mundo imaginário necessariamente que se dissolve:

“Ah, se isso já tivesse passado!
A ilusão não me pode
Alegrar de modo algum”.

Mas esta irrealidade tem um caráter completamente contrário como a na corte imperial. Aqui uma realidade empírica, que fosforesce fantasticamente do apodrecimento interior – lá o idealmente supremo de uma luta secular da humanidade moderna pela luz, clareza e beleza; o mais sublime ideal da realidade colocado como real, mas só colocado, não sendo empiricamente real. E justamente por isso suprimido, destruído novamente pela realidade.

A destruição é a função da cena de Euphorion. Sobre a identidade ou não identidade de Euphorion com Byron foi escrito muito. Sem dúvida a morte de Byron em Missolunghi deu a forma definitiva de cristalização às cenas de Euphorion. Mas a mera explicação filológica deste personagem através da relação recorrente com Byron não esclarece suficientemente o conteúdo histórico-filosófico e poético das cenas. Além disso, não se deve perder de vista como Goethe viu Byron, por que ele viu nele o representante daquela nona época, que passa por cima da renovação da antiguidade e vai ao encontro a um e vai ao encontro de um novo futuro pleno de novas tragédias.

Em uma conversa com Eckermann Goethe diz: “Byron não é antigo e não é romântico, mas ele é como o próprio dia de hoje. Eu precisava de tal”. (Assim toda explicação que procura aqui uma reconciliação entre Classicismo e Romantismo é falsa). Ainda mais concretamente Goethe manifesta em uma conversa anterior, como ele compreende esta não antiga e não romântica modernidade de Byron. Ele formula “símbolo” de Byron assim: “Muito dinheiro e pouca autoridade”. Ele vê assim nele o maior representante de um individualismo liberal-anárquico, o representante ideológico da nascente era capitalista que solta a última renascença da antiguidade, o período de Goethe e Napoleão.

Goethe sente muito fortemente que esta nova era não seja mais a da sua própria florescência poética. Mas do mesmo modo ele tem a nítida impressão de que aqui está diante dele algo de legítimo, progressivo, em um sentido histórico-filosófico por demais afirmativo. Por isso ele sempre defende Byron contra as objeções burguesas de Eckermann que contesta que Byron seja vantajoso à “pura formação do ser humano”. “Aí eu preciso contradizê-lo”, diz Goethe, “a valentia, a ousadia e grandiosidade de Byron, tudo isto não é instrutivo? Nós devemos nos guardar de sempre querer buscar isto no categoricamente puro e ético. Todo grande informa, tão logo nós o constatamos”.

Esta forma, o símbolo da nova era que se aproxima, rompe o clássico mundo dos sonhos, da mesma forma como a beleza da antiguidade rompeu o mundo fantástico medieval.

Já antes da entrada em cena de Euphorion, Phorkyas-Mefistófeles diz:

“Livrem-se rapidamente das fábulas!
Velha rixa dos seus deuses,
Deixem-na ir, ela já passou.”

Assim está aí pronta em Euphorion a ideologia da mais recente época, ainda que em uma forma tragicamente suscetível, mas de um modo que do declínio necessária e novamente devem seguir novos desenvolvimentos que a personagem declinante do próprio chão que a produziu deve ser reproduzida sempre novamente. Por isso o cântico de lamentação do coro sobre a morte trágica de Euphorion termina com as palavras:

“Quem consegue isso? - Triste pergunta ,
À qual o destino se disfarça,
Quando no dia mais infeliz
Todo o povo disfarça sangrando.
Então revigorem novas canções,
Não fiquem mais tempo profundamente humilhados:
Pois o solo as gera novamente,
Como desde sempre ele as gerou”.

Esta concepção é profunda e grandiosa. Seu caráter especialmente goetheano está no fato de que a renovação da antiguidade com certa parcialidade será tomada só do lado esteticamente moral, como roupagem das últimas “ilusões heroicas”; a antiguidade do terror revolucionário e também a do período napoleônico bem diferentemente moldado está ausente neste quadro histórico goetheano simbolicamente criado, embora ele objetivamente sem este desenvolvimento histórico impossivelmente teria podido alcançar seu apogeu filosófico e poético. Goethe é nesta questão muito menos decisivo que Hegel tardio, para quem a Revolução Francesa foi indispensável como passado, como elo necessário da dialética histórica; na “Fenomenologia” a Revolução Francesa é até mesmo o fundamento direto da contemporaneidade, do novo tempo que desponta. Goethe sempre aprovou o conteúdo social e político da Revolução Francesa, e sua aprovação aceita com a idade sempre as formas mais categóricas, mas ele sempre recusa o caminho político-revolucionário da revolução. Nisso ele fica até o fim da vida o filho do esclarecimento. Mas aqui não estaria esquecido que estas qualificaram os herdeiros franceses do Iluminismo muito mais desenvolvidos em sua perspectiva de futuro, os grandes utopistas, o caminho político-revolucionário do mesmo modo sempre como impossível e nocivo. Logo a opinião positiva de Goethe para o conteúdo da Revolução Francesa no “Fausto” manifesta-se só ocasional e indiretamente, assim na noite das bruxas da primeira parte, onde os emigrantes franceses, os diferentes tipos de ci-devants, foram escarnecidos do modo mais desdenhoso, tão ocasionalmente nas cenas de Euphorion, assim, como veremos mais tarde, como perspectiva no último monólogo de Fausto.

Por isso falta no quadro histórico da segunda parte o agir político. É evidente que Fausto não pode agir de modo algum na corte imperial. Os fragmentos póstumos mostram isso ainda mais nitidamente que o próprio texto. Em um rascunho Goethe deixa o seu Fausto expor planos ilimitados ao imperador. O imperador escuta sem compreender absolutamente nada. Quando Mefistófeles percebe que a situação se torna totalmente insuportável, ele assume a personagem Fausto, fala muitos disparates, sobre o que o imperador e a corte estão encantados pela profundeza e grandiosidade do novo feiticeiro. E mesmo quando Fausto após o desaparecimento da antiguidade volta para a vida, interessa-o somente a luta economicamente técnica da sujeição da natureza.

Nas cenas preparatórias para esta última etapa sobressai o tom de Fausto que resigna humanamente. Ele rejeita cada prazer: “O desfrutar vulgariza”. Ele não se preocupa com nenhuma fama: “A ação é tudo, nada a fama”. Goethe deixa até mesmo Mefistófeles parodiar a cena da tentação de Cristo pelo Satanás e oferecer ao Fausto “os reinos do mundo e as suas glórias, mas Fausto recusa e não quer nada senão um campo de atividade para os seus novos planos. Também aqui os fragmentos isolados são mais compreensíveis que a própria obra; em um isso chega até mesmo à ruptura com Mefistófeles.

Esta concepção da prática social pelo Goethe idoso na literatura de Fausto foi frequentemente criticada, sobretudo por F. Th. Vischer, que até mesmo elabora um plano de como Goethe deveria ter escrito a segunda parte. Ele reivindica a participação de Fausto na guerra dos camponeses, e na verdade como liberal, que quer evitar todos “horrores” da revolução; Mefistófeles, porém, com quem Fausto já rompeu anteriormente, deve introduzir-se furtivamente no movimento rebelde, como “radical” exagerá-lo, causar “excessos” que Fausto na verdade não quer, mas pelos quais ele é responsável. O arrependimento sobre isto deve provocar a purificação de Fausto. Abstraindo da estreiteza subjetivamente moralizante desta concepção - nós vimos que Goethe para a segunda parte recusa de antemão tais categorias da moral puramente individual como o arrependimento –, manifesta-se nisto uma liberal filosofia da história, segundo a qual os verdadeiros representantes do princípio mefistofélico teriam sido os revolucionários plebeus, os Münzer e Robespierre.

Em toda a incompreensão para os esforços da democracia consequentemente revolucionária democrática Goethe é muito superior a tal concepção. Ambientes análogos aparecem até mesmo de vez em quando na obra de juventude” Götz von Berlichingen”, mas têm lá, porque se trata de uma obra de um iluminista pré-revolucionário, ainda um significado bastante diferente. O ideal de Vischer foi realizado no “Fausto” de Klinger, no qual a decepção, o perder a confiança em um poeta do Impetuosismo na Revolução Francesa se manifestou claramente. Goethe não pode de modo algum procurar o caminho da revolução democrática, mas também nunca se acha em suas obras relevantes uma luta reacionária ou liberal contra ela. A saída genial que ele acha e que evidentemente de modo algum pode estar livre dos elementos utópicos, é justamente a do desenvolvimento das forças produtivas através do capitalismo.

É característico que também esta saída de Vischer é desaprovada. Ele acha que Fausto poderia produzir a reconciliação através de uma atividade prática, “mas só não através de uma prosaicamente industrial. O liberal Vischer, que é para o capitalismo como fenômeno total incomparavelmente mais positivo e menos crítico que Goethe, critica portanto – pequeno-burguês-romanticamente – justo o mais magistral no final de “Fausto”: a descoberta de um novo heroísmo prático, de um novo e profundo conflito trágico bem no centro da prosa capitalista.

Mas embora Vischer passe desatentamente pelos poeticamente maiores momentos da segunda parte, ele vê porém, apesar da parcialidade liberal-romântica, pelo menos os próprios fatos corretamente. O reacionário romântico do período imperialista, Friedrich Gundorf, está tão profundamente indignado sobre o afastamento de Goethe do seu “Titanismo” da juventude que ele nem mesmo está em condições de absorver o texto do final corretamente e acha, Fausto entraria no final no “serviço público”.

A conclusão da segunda parte cresceu organicamente da observação da sociedade do Goethe que amadurece. Aquele que conhece os seus juízos das últimas décadas, a ele este final é de modo algum surpreendente. Goethe recusa ironicamente as ilusões obscuras das guerras de libertação, mas julga mais tarde que as boas estradas de rodagem e de ferro necessariamente levariam à unidade da Alemanha; ele se interessa apaixonadamente por todo novo progresso técnico-econômico do capitalismo e exprime uma vez o desejo de poder vivenciar a criação do canal Danúbio –Reno, do canal de Suez e do Panamá. Disso faz parte também na Alemanha de então a muito rara atitude invejosamente reconhecida ao desenvolvimento iniciante nos Estados Unidos.

Desta perspectiva surge em Goethe a ilusão de que a revolução política poderia ser supérflua em um desenvolvimento das forças produtivas tão desenfreadas e grandiosas. Aqui está uma das mais importantes parcialidades e limitações da sua visão do mundo que também se reflete em sua filosofia da natureza, na sua concepção da dialética, na ênfase excessiva da evolução, na rejeição de toda “teoria da catástrofe”. (Mas a constatação desta parcialidade não deve ocultar que grande passo adiante a filosofia da natureza de Goethe significou porventura perante Cuvier). E justamente esta parcialidade é ligada em Goethe o mais estreitamente com a sua frequentemente acentuada posição singular, com a maneira específica, na qual ele lança uma ponte do iluminismo ao século 19.

Mas por mais que se possa também criticar os limites de Goethe, é certo que a poética “Fenomenologia do Espírito” termina com o real desenvolvimento das forças produtivas como aquele poder que conduz da experiência fantasmagórica do feudalismo ao mundo do desenvolvimento real das capacidades humanas, o mundo real da atividade humana. O caráter diabólico da forma capitalista desse progresso não será dissimulado em Goethe, como nós veremos a seguir; mas ao mesmo tempo é mostrado que só aqui é aberto o verdadeiro campo da prática humana. Para a questão da Renascença tragicamente insolúvel do início, para o trágico da cena do gênio da terra só este final prático-prosaico dá a resposta adequada .

Enquanto Goethe na sua concepção do Fausto se detém menos que Lessing no conceito iluminista do conhecimento, refere-se antes mais fortemente às tradições renascentistas, obtém um trampolim para a moderna unidade entre a teoria e a prática, desenvolvida através do desenvolvimento da indústria.

Certamente aqui só está disponível a perspectiva da resposta. O horizonte de Goethe não chega além do capitalismo. Sua profunda honestidade intelectual e poética leva por isso a uma representação em oposições sem recurso algum e insuperáveis. Assim a prática capitalista é na verdade a realização da aspiração de Fausto pela vida, mas ao mesmo tempo inseparável disso um novo campo de atuação maximamente ativo para Mefistófeles, depois que este nas cenas antigas tinha descido quase ao mero espectador. Assim aparece a configuração deste novíssimo tempo em formas discrepantes, contraditórias. De um lado temos diante de nós a adesão juvenil revolucionária de Euphorion, de outro Fausto como centenário ancião cego. Goethe sente, sem poder alcançar aqui a clareza conceitual histórica, a era capitalista ao mesmo tempo como velha e nova, ao mesmo tempo como início e fim.

Em todos estes complexos as contradições estão claramente formadas, mas elas permanecem não somente insolúveis, como nunca estão reciprocamente em Goethe uma à outra tão brusca e dissonantemente opostas como de costume. A perspectiva do desfecho das contradições trágicas no último monólogo de Fausto é expressamente uma pura perspectiva do futuro. As palavras esperançosas de Fausto estão em aguda oposição à situação real, em que elas são expressas: os espíritos cavam o túmulo de Fausto segundo a instrução de Mefistófeles, enquanto ele sonha com grandes trabalhos produtivos que conduzem a humanidade acima. A transcendência cristã celestial do último final segue, como nós veremos, ainda pormenorizadamente, intelectual e esteticamente necessária destes resultados finais da filosofia goetheana da história, da insolubilidade por princípio das contradições da vida sobre aquele solo real, que é conhecido pelo pensador e pelo poeta Goethe. Todas as críticas assim, que exigem um fim meramente terreno, são só aparentemente mais radicais que Goethe o era; substancialmente está atrás delas uma concepção do mundo trivialmente liberal: a pretensão de trazer à “reconciliação” todas as contradições da vida capitalista na própria sociedade capitalista. A visão de Goethe é incomparavelmente mais profunda: ele crê em uma parte essencial incorruptível no ser humano, na humanidade e seu desenvolvimento; ele crê na salvação desta parte essencial também na (e principalmente: apesar da) forma do desenvolvimento capitalista.